segunda-feira, 27 de julho de 2015


Juízes donos dos filhos dos outros...

Portugueses desde pequeninos


Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 21 de Julho de 2015

Permitam-me uma declaração de interesses ou, melhor dizendo, de completo desinteresse: não consigo imaginar porque é que alguém publica fotografias dos filhos no Facebook. Nenhuma criatura razoavelmente saudável está interessada na fisionomia dos rebentos alheios. Ninguém, salvo eventuais maluquinhos, sente curiosidade por retratos de crianças a tentarem uma pose «gira» ou a enfardarem um Cornetto. E só um caso perdido apreciaria acompanhar reportagens informais e ilustradas sobre as aulas de bailado de petizes que mal conhece ou desconhece de todo. Quem disser o contrário é mentiroso e, até pelos padrões do Facebook, falso amigo.

Dito isto, custa perceber a recente decisão dos tribunais de Setúbal e Évora, que proibiram um casal de exibir a filha nas «redes sociais». As razões avançadas foram sobretudo duas. A primeira prende-se com a ameaça de «predadores e pedófilos», os quais pelos vistos usam as ditas «redes» para descobrir que uma criança existe e espantosamente possui um par de olhos e um nariz.

A segunda razão é um primor: «os filhos não são coisas ou objectos pertencentes aos pais e de que estes podem dispor a seu belo sic prazer». No acórdão, fica lindo. No mundo real, fica a dúvida: os pais mandam ou não mandam nos filhos? Têm ou não têm legitimidade para obrigá-los a estudar ou a comer a sopa? Falta muito para as autoridades reservarem para si os encantos da amamentação? Goste-se ou não, a verdade é que nada prepara para a vida adulta tanto quanto a nacionalização precoce: tornar as crianças dependentes do Estado por lei é apenas antecipar aquilo que, crescidas, farão por vocação. Tudo está mal quando começa mal.






«Estamos a criar crianças totós,

de uma imaturidade inacreditável»




Rita Ferreira, Observador, 25 de Julho de 2015

Quanto mais recreio, mais atenção nas aulas. Quanto menos liberdade para brincar, maior o risco de acidentes. Carlos Neto, professor da FMH, explica por que tem de ser travado o «terrorismo do não».

Carlos Neto é professor e investigador na Faculdade de Motricidade Humana (FMH), em Lisboa. Trabalha com crianças há mais de quarenta anos e há uma coisa que o preocupa: o sedentarismo, a falta de autonomia dada pelos pais às crianças e a ausência de tempo para elas brincarem livremente, correndo riscos e tendo aventuras. É um problema que tem de ser combatido, diz. Porque a ausência de risco na infância e o facto de se dar «tudo pronto» aos filhos, cada vez mais superprotegidos pelos pais, acaba por colocá-los em perigo. Soluções? Uma delas passa por «deixar de usar a linguagem terrorista de dizer não a tudo: não subas, olha que cais, não vás por aí…».

Carlos Neto trabalha com crianças há 48 anos.
Há dez anos já se falava no sedentarismo das crianças portuguesas. Lembro-me que dizia que uma criança saudável é aquela que traz os joelhos esfolados. Como estamos hoje?

Há dez anos nós falávamos que as crianças tinham agendas, hoje digo que têm super-agendas! Há dez anos eu dizia que as crianças saudáveis eram as que tinham os joelhos esfolados. Hoje, acho que os joelhos já não estão esfolados, mas a cabeça destas crianças já começa a estar esfolada, por não terem tempo nem condições para brincar livremente. Brincar não é só jogar com brinquedos, brincar é o corpo estar em confronto com a natureza, em confronto com o risco e com o imprevisível, com a aventura.

As crianças brincam porque procuram aquilo que é difícil, a superação, a imprevisibilidade, aquilo que é o gozo, o prazer. E, portanto, as crianças que eu apelido de crianças «totós», são hoje definidas como crianças superprotegidas, crianças que não têm tempo suficiente para brincar e crianças que não têm tempo nem espaço para exprimir o que são os seus desejos. E o primeiro desejo de uma criança é o dispêndio de energia, é brincar livre e com os outros, mesmo que muitas vezes em confronto. Porque o confronto é uma forma preciosa de aprendizagem na vida humana. E nós estamos a retirá-los de tudo isso. Estamos a dar tudo pronto e não estamos a confrontá-los com nada. E isso terá muitas consequências.

Estamos a falar de que idades?

Estamos a falar de crianças entre os 3 e os 12 anos. Significa que aumentou de facto esta taxa de sedentarismo, eu diria mesmo de analfabetismo motor, estamos a falar de iliteracia motora. Trabalho há 48 anos com crianças e sei avaliar o que se passou. As crianças têm menos capacidade de coordenação, menos capacidade de percepção espacial, têm de facto menor prazer de utilizar o corpo em esforço, têm uma dificuldade de jogo em grupo, de ter possibilidades de ter aqueles jogos que fazem parte da idade. Ao mesmo tempo, institucionalizou-se muito a escola. Nós hoje temos as crianças sentadas durante muito tempo, não há uma política efectiva adequada de recreios escolares. Os recreios são organizados muitas vezes em função de um modelo de trabalho, ou de um modelo de funcionamento pedagógico, que tem a ver mais com as aprendizagens pedagógicas obrigatórias ou consideradas úteis, e muito menos com as actividades do corpo em movimento. E, por isso, há alguns trabalhos de investigação que temos vindo a fazer, onde tentamos mostrar a correlação entre o tempo que as crianças têm de recreio, a qualidade de actividade que fazem no recreio e a capacidade de aprendizagem na sala de aula.

«Temos hoje crianças de 3 anos que, ao fim de dez minutos de brincadeira livre, dizem que estão cansadas, temos crianças de 5 e 6 anos que não sabem saltar ao pé-coxinho. Temos crianças com 7 anos que não sabem saltar à corda, temos crianças de 8 anos que não sabem atar os sapatos.»